segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Oitavo Ser - Conto da leitora Liana Zecca

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O oitavo ser

− Querido, venha, venha logo, já estão nascendo.
Rodolfo se levantou, praguejando por ter sido tirado da cama àquela hora da madrugada. Se não amasse tanto sua mulher, teria atirado-a do quarto andar do edifício que viviam, sem dó nem piedade.
 Ao chegar à lavanderia, só reparou que a porca da cachorra tão querida e amada por sua esposa tinha feito a maior sujeira para dar à luz àquelas horrendas criaturazinhas de quatro patas.
− Veja, meu amor, são sete até agora. Será que vem mais um? − Marina fala, sem esconder sua empolgação.
− Espero que não − diz ele, ainda com expressão enojada ao presenciar a cadela rasgando a bolsa que envolvia o sétimo filhote e a engolindo. Quase tem que sair correndo dali para vomitar no banheiro.
Mas sabia que se o fizesse, sua esposa jamais o perdoaria e seu casamento iria por água abaixo. Continua ali, tendo que disfarçar seu mal-estar.
− São lindos, querida, mas acho que ela já terminou. Pelo menos, me parece tranquila.
− Ela está agindo estranho − fala sua esposa. − Parece que ainda espera por mais algum. Veja como está cansada e deitada; vou colocar os filhotes para mamar. Assim, talvez ela tenha mais contrações e acabe expelindo o que a incomoda.
Ele acompanha com o olhar sua esposa Marina posicionar aquelas coisas ainda melequentas e de olhos fechados em cada teta da cadela. Como morcegos, passam a sugar com força o leite da pobre mãe, que, estendida, respira de maneira intercalada.
Alça as sobrancelhas quando a vê respirar cada vez mais rápido; nota com precisão que as contrações expelem um novo ser. Contrações essas que parecem vir como ondas do mar, de cima para baixo, até que ouve um esguichar. Próximo à anca da cadela, algo minúsculo sai de dentro dela; vira o rosto e pensa que não conseguirá controlar mais a ânsia que se apossou de seu interior.
“Meu Deus, se parto humano for igual a isso, eu nem quero estar presente”, pensa.
− Veja, querido, ela está agitada com o último filhote. Tem  alguma coisa errada... − sua esposa diz, toda preocupada com aqueles monstrengos melequentos.
Respira fundo e observa a cadela − que sua esposa chama carinhosamente de Pipoca − abandonar os filhotes que mamam, para auxiliar aquele, expelido por último.
Ela o lambe com ferocidade, tira todo o invólucro que o recobre e continua lambendo-o, como se o massageasse. Escuta-se, por fim, um choro, se é que se pode chamar de choro o som horroroso emitido por aquela coisa ali embaixo.
Agacha-se para olhar melhor aquela coisa molhada;  percebe que algo não está bem.
Observa atentamente aquele último pequeno, e os outros, até que nota a diferença. “Este último não tem quatro patas, e, sim, três, meu Deus”, pensa. “Só me faltava essa: um aleijado na família.”
− Oh! Pobrezinho − são as palavras de sua esposa. − Querido, temos um deficiente na família. − Ela sorri, como se tudo aquilo fosse tão normal.
Se por sua cabeça se passava que já seria difícil se livrar de sete, quanto mais dessa aberração, nascida por último. O oitavo ser, que gostaria de colocar em uma sacola e jogar ao mar para servir de comida aos peixes. Mas, ao invés de dizer aquilo que realmente pensava, suspira profundamente e diz:
− Bom, acho que, agora, tudo terminou e estão bem. Vamos para a cama porque amanhã tenho que trabalhar cedo.
− Claro, meu querido, agora ela está bem.
“Sim”, pensou ele. “Na companhia de oito quatro patas detestáveis”. Não bastasse a ele ter que suportar uma, mas oito era pedir demais. E pior: se todos tivessem quatro patas, até que tudo bem, mas um era perneta − somente três patas o desgraçado tinha.
E aquele último presente − uma aberração − deveria ser jogado na lixeira naquele mesmo instante, mas estava cansado demais e com muito sono. Conversaria com sua esposa na manhã seguinte: os sete melequentos até poderia suportar, mas a aberração não; não o quer de jeito nenhum em sua casa.
Na manhã seguinte, assim que acordam e tomam o café, ele cria coragem. Fitando sua querida esposa, diz:
− Assim que desmamar, eu não o quero aqui.
Confusa e sem entender, ela lhe pergunta:
− Quem, meu amor?
−  O oitavo, não o quero aqui.
− Mas, por quê? Ele é tão lindo como os outros.
− Não, não é. É uma aberração e eu não o quero aqui.
− Rodolfo, ele é apenas um cachorrinho que veio ao mundo incompleto. Se você o olhar novamente hoje, verá que tem a patinha, mas ela não se desenvolveu.
− Não me interessa; é deficiente e não o quero aqui. Assim que desmamar, dê a alguém que aceite isso, ou então jogo fora eu mesmo.
A dor por ouvir aquelas palavras saídas da boca de seu marido dilacera o coração de Marina.
“Será?” Pensa se errou tanto na escolha do homem para ser seu amor e com quem constituir uma família. Essa atitude dele em lidar com um problema tão pequeno a assusta; e se fosse o filho deles que tivesse nascido assim? O que ele faria, como reagiria? Colocaria em um saco de lixo e o atiraria ao mar, ou ao vê-lo no berçário o rejeitaria por toda a vida?
Só porque Deus quis dar a eles algum trabalho a mais? Ainda assim, ela levaria a cruz até onde fosse possível levar, pois acreditava não se tratar de uma cruz e, sim, um ensinamento, uma provação possível de ser superada. E é isso que a leva a dizer ao marido, ao se deitar nessa madrugada, que se decidiu pela criação do oitavo filhote.
Mas a reação de Rodolfo a surpreende, levando-a a refletir se não cometeu um erro em escolhê-lo como seu marido por toda uma vida.
− Você está louca, Marina? Por mim, eu já tinha enfiado ele na lata de lixo ou dado descarga nele, se não fosse o risco de entupir o vaso.
Mesmo em choque com palavras tão cruas, ela tenta argumentar:
− Querido, não podemos fazer isso. Ele, o oitavo, deve ser o mais assistido por nós; apenas porque nasceu com uma deficiência  não quer dizer que não possa ter uma vida normal como os outros. Eu tenho certeza de que ele irá superar logo seu problema.
− Marina, por favor, OK? Sou eu que não o quero aqui mais do que o necessário.
Marina o olha e, neste momento, tem a certeza de que errou de fato na escolha do homem por quem se apaixonou.
− Ok, meu querido, tentarei doá-lo assim que desmamar.
O tempo passou e todos os filhotes, mais crescidos, foram indo  embora, levados por outras pessoas que lhes dariam um lar, comida, idas a pet-shops para tomar banho, ter suas unhas cortadas, seu pelos escovados e, principalmente, ser amados por crianças e adultos.
Passados três meses de vida feliz junto aos seus irmãozinhos, Dakota, como era chamado por sua dona, foi-se vendo cada dia mais solitário. Primeiro um, depois outro, depois outro, até chegar o seu dia, que passou, passou e nada aconteceu.
Olhou para sua mãe, quando seu último irmãozinho foi adotado e lhe perguntou:
− Mamãe, e eu?
-Oh, meu querido, não se preocupe. Logo, logo aparecerá alguém que irá adotá-lo. Se isso não ocorrer − ela lhe dá aquele doce sorriso e completa −, tenho certeza de que meus donos ficarão com você. E eu serei a mãe mais feliz do mundo, por permanecer na companhia do meu lindo e amado filhote.
Mas, infelizmente, isso não chegou a se realizar.
Naquela manhã, depois que sua esposa saiu para o trabalho,  Rodolfo, cansado de esperar que aquele detestável perneta seja comprado ou adotado, resolve dar fim a ele. Pega um grande saco preto de lixo e, com um sorriso de vitória, decreta:
− Vem cá, seu monstrengo! Você vai para um lugar onde deveria ter ido desde o primeiro dia em que nasceu.
Ao som do choro irritante do caõzinho, no entender de Rodolfo, Dakota é colocado dentro do saco de lixo, e este, amarrado nas pontas.
Seu coraçãozinho bate descompassado, sem entender o que está acontecendo. Ouve os latidos desesperados de sua mãe, que se tornam cada vez mais baixos conforme se distanciam de sua casa. Tem falta de ar; chora muito, até que desmaia.
Algumas horas depois, quando acorda, a escuridão ainda é total. Tenta se mexer, avista uma luzinha fraca entrando pela ponta do saco em que se encontra, acompanhada de uma leve brisa. Respira fundo, mas apavorado, permanece ali quietinho.
Passados alguns minutos, sente uma forte pontada bem na sua coxa.
“Meu Deus, o que está acontecendo?” Mal consegue finalizar seu pensamento, quando sente outra pontada, agora em sua barriga.
“Ai!”, grita. Em seguida, ouve vozes.
− Clotilde! Corra, mulher, corra!
− O que foi, Artur.
− Tem alguma coisa viva nesse saco de lixo.
− Tem certeza, meu velho? Será que esses humanos jogaram novamente um semelhante seu no lixo?
− Acho que sim, minha querida, porque vi que o saco se mexeu e ouvi um som, mas não reconheci como sendo de “gente”.
− Oh, pobrezinho, o que vamos fazer? Eles não nos entendem, como vamos avisá-los?
− Vou abrir o saco para ver.
E Artur começa a bicar a ponta do saco, até que o rasga totalmente. Ao abri-lo, vê Dakota que, apavorado, lhe devolve o olhar.
− Ufa! − diz Clotilde.
− Desta vez, é apenas um cãozinho, veja meu velho.
− Hum... − responde Artur, pensativo.
− Agora sabemos por que foi jogado fora; é deficiente, o moleque.
− Nem mesmo por isso eles têm razão.
− Olá, pequeno, como você está? − pergunta Artur.
− Quem são vocês? − Dakota pergunta, apavorado, diante daquelas criaturas enormes, negras e aladas, que nunca soube existir, por ser tão pequenino ainda.
O sorriso simpático de Clotilde e o riso suave de Artur fazem com que Dakota se sinta mais tranquilo.
− Bom, meu pequeno, agora somos os seus salvadores.
− Obrigado, senhor e senhora.
− Que lindo, ele é bem educadinho − fala Clô. − Diga-me, meu filho, você consegue andar?
− Sim, não como meus irmãos andavam, mas eu consigo, querem ver?
− Claro, meu anjo, venha, vamos sair deste lixão. Logo, chega mais um caminhão de lixo para ser despejado aqui e você corre perigo.
Dakota, apesar da sua deficiência, segue dona urubu Clotilde e seu Artur até um local seguro.
− É aqui − diz dona Clotilde.
Dakota olha ao redor e vê montes de entulhos jogados no terreno baldio ao qual foi levado, a mais de um quilômetro de onde se localiza o lixão.
−  Me parece o mesmo lugar de onde saímos − ele diz.
− É verdade, meu filho, mas é um terreno que está à venda. Infelizmente, muitos humanos preferem jogar seu lixo aqui do que guardá-lo para a prefeitura levar ao lugar certo, a fim de ser separado e reciclado.
− O que é reciclar? – pergunta, curioso.
− Ai, ai. Explica para ele, minha querida.
E dona Clotilde tenta explicar a Dakota, exemplificando a finalidade de sua espécie viver aqui na terra.
− Meu pequeno, sabe o que somos e para que servimos, neste mundo?
− Não − responde Dakota, mas demonstrando grande curiosidade.
− Bem, a nossa espécie, apesar de os humanos nos verem com certo asco e mau presságio, se alimenta da carniça de animais mortos. Com isso, representamos, na realidade, um fator de equilíbrio ecológico para a não propagação de doenças a esses mesmos humanos que nos vêm de forma tão errônea. Isso quer dizer que fazemos a limpeza  − reciclamos o lixo, por assim dizer −, retiramos o que é ruim, aproveitado por nós como alimento, e deixamos o bom, a limpeza da terra, entende?
− Puxa, show! − diz Dakota com verdadeiro entusiasmo. − E eu, para que vim a este mundo?
− Você é um lindo cão Labrador; serve para fazer a felicidade das crianças, ou para um trabalho muito sério de guia, ao ajudar as pessoas humanas que não enxergam a se locomover e ter uma vida mais independente e feliz.
Dona Clotilde percebe que suas palavras afetam o pequeno Dakota. Ao olhar em seus olhos, vê que lágrimas lhe escorrem pelo lindo focinho.
− Oh, meu querido, eu disse alguma coisa que te magoou?
− É que eu nasci deficiente; como poderei ajudar um deficiente a se locomover, se eu mesmo sofro com esse problema?
Clotilde olha para Artur, desesperada por sua ajuda. Sabe como se sente o pequeno Dakota e não tem uma resposta para ele.
Seu Artur, para demonstrar confiança, limpa a garganta e tenta convencer Dakota de que se Deus o colocou no mundo assim, com certeza, ele, na realidade, é um vencedor e poderá superar seus desafios, tornando-se um bom cão-guia como outro qualquer.
− Veja bem, meu pequeno: você veio a este mundo com apenas três pernas; foi rejeitado pelo seu dono, que o enfiou em um saco para morrer no lixão e, mesmo assim, Deus nos fez te encontrar  − o que prova que veio ao mundo para viver. Conseguiu ainda nos acompanhar até aqui facilmente. Enquanto precisar da nossa ajuda, a terá, mas é importante aceitar que se tudo isso lhe aconteceu é porque nosso Senhor o quer e acredita em você.
− Quer dizer que, quando eu crescer, poderei servir de ajuda a alguém?
− Claro, como todos nós servimos.
Dakota sorri e, agora, mais tranquilo e seguro, diz sentir-se cansado e com sono. Teve que aprender muitas coisas em tão pouco tempo, mas está feliz: com um sonho a realizar, fará tudo por ele.
⎈  ⎈   ⎈
O tempo passou e Dakota cresceu, tornando-se um lindo Labrador. Um dia, caminhando sem rumo pela cidade, repara que um jovem de bengala tenta atravessar a avenida, onde grandes monstros de lata passam em alta velocidade, sem nenhum respeito às listras brancas pintadas no chão.
Seu Artur lhe havia dito que elas servem para sinalizar a essas grandes latas motorizadas que parem, dando passagem a humanos pedestres, que têm de ir e vir para seu trabalho ou casa.
Aproxima-se do rapaz e se coloca ao seu lado, latindo:
− Au! Au!
Leandro é um jovem que perdeu a visão devido a uma doença rara. Embora não seja pobre, para obter um bom cão-guia, terá de aguardar ainda alguns anos. Treinar cães-guias é uma atividade difícil e demorada, principalmente porque seus treinadores enfrentam dificuldades em acessar vários locais públicos − proibidos que são de entrar com os cães como seus acompanhantes. Assim, estes têm seu treinamento retardado para servirem aos seus futuros donos cegos.
Antes mesmo da cegueira atingi-lo, Leandro sempre amou os animais; era considerado fera na informática, habilidade de que se utilizava para auxiliar instituições de proteção à flora e fauna na denúncia contra tudo o que de ruim acontece em nosso planeta.
−  Oi, você está aí? – diz, tateando abaixo dele até encontrar a pelagem macia de Dakota, posicionado ao seu lado.
Ao senti-la, ele sorri.
− Ei, meu amigo, o que faz aqui? Tem alguém junto a você?
Dakota apenas se limita a latir:
− Au, au!
Leandro, curioso, começa a acariciá-lo. Percebe que tem diante de si um Labrador. Toca-o da cabeça até sua anca; agacha-se, tocando-o e procurando sua pata. Percebe, assim, que ele é um cão deficiente.
− Olá, meu amigo, pelo visto, temos um pequeno defeito: ambos somos deficientes − diz, sorrindo.
Dakota o lambe todo, feliz. Mesmo sem enxergar, Leandro, ciente da alegria do cão, pergunta:
− Você quer me ajudar a atravessar a rua?
A resposta vem em forma de um festivo latido. Leandro, também feliz com a inesperada amizade, segura-se no pelo do pescoço de Dakota, dando sua vida em confiança àquele simpático animal. Ao ver o sinal abrir, Dakota segue em frente em seu passo capenga, mas firme, até chegarem ao outro lado.
Com lágrimas nos olhos, Leandro constata naquele momento que terá, enfim, o seu tão sonhado cão-guia. Dakota, que na língua indígena significa “amigo”, sabe que conquistou aquele humano, que o amará por toda a sua vida e será seu grande amigo.
Sobre suas cabeças, Clotilde e Artur sobrevoam. Dakota ouve deles:
− Nós te dissemos, meu querido: Deus sabe o que faz.
Quanto a Rodolfo, esse ficou só, pois sua amada esposa, assim que chegou em casa e deu pela falta do filhote, entendeu quem estava por trás do seu sumiço. Arrumou suas malas e partiu, levando Pipoca, que, agora, é novamente mãe − dando a Marina muita felicidade.



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